Depois de lidar com a crise causada pela pandemia do coronavírus e com meses de portas fechadas ou sem trabalho, pequenos empresários e profissionais autônomos enfrentam um novo problema: a inflação, que ficou em 0,87% em agosto e chegou a 9,68% no acumulado em 12 meses.
Levantamento "Retrato dos rendimentos e horas trabalhadas durante a pandemia" do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) aponta que os trabalhadores por conta própria foram os mais afetados pela crise provocada pela Covid-19, mas são também a categoria que se recupera com melhor desempenho este ano.
No segundo trimestre de 2021, o rendimento do trabalhador por conta própria teve um aumento de quase 20% em relação ao mesmo período do ano passado, no auge da pandemia. Ainda assim, esse valor representa 94% do que o autônomo habitualmente ganhava no pré-pandemia (confira o gráfico abaixo).
De acordo com Sandro Carvalho, economista autor da pesquisa, o mercado de trabalho recuperou seus movimentos tradicionais com a vacinação, mas em um nível abaixo do que era em 2019. Nas próximas semanas, ponderou, haverá abertura de vagas e oportunidades para autônomos e empreendedores por conta das festas de fim de ano.
"Vamos começar 2022 no ritmo que estamos agora. Não devemos recuperar o ritmo da pré-pandemia porque dependemos de dinheiro circulando. E isso vale tanto para profissionais registrados, quanto para autônomos e pequenos empresários", disse Carvalho.
Cenário de instabilidade
Diante dessas incertezas, os donos de pequenos negócios precisam de muita organização e jogo de cintura para negociar com fornecedores, controlar gastos e diminuir os repasses dos custos para seus clientes, de acordo com Giovanni Beviláqua, analista da Unidade de Capitalização e Serviços financeiros do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
"Os clientes também estão sofrendo com a alta de preços e com o custo do crédito. Repassar de imediato os custos da inflação para eles pode não ser uma boa estratégia”, alerta Beviláqua.
O analista dá algumas dicas importantes:
- Ficar atento aos indicadores econômicos, como a Selic e a inflação;
- Ter um controle detalhado dos gastos para conseguir diminuir custos;
- Colocar os custos em ordem de prioridade para controlar o fluxo de caixa. Isso ajuda a conhecer a real situação do negócio e a elaborar estratégias para evitar, quando possível, os repasses ao consumidor;
- Sempre negociar as dívidas, os preços com fornecedores, aluguéis, taxas, financiamentos e o que mais pesar no orçamento;
- Analisar muito os investimentos que farão nesse período;
- Ficar atento aos estoques para não exagerar nas compras;
- Usar estratégias para conquistar clientes, focando no marketing.
O g1 também ouviu empreendedores e autônomos que contam suas estratégias para driblar a alta nos preços.
Novos serviços e controle dos preços
Gabriela Mikhin é formada em administração, lash designer há 9 anos e empreendedora há três. Ela comanda o Studio Gabriela Mikhin, especializado em extensão de cílios, em Maringá, no Paraná.
Ela ainda não recuperou o faturamento pré-pandemia e agora enfrenta a alta no preço da sua principal matéria-prima: os cílios sintéticos, que têm custado o dobro. Outro gasto que pesa no orçamento é a conta de luz, puxada pelo ar-condicionado, item essencial para a manutenção da temperatura adequada para os procedimentos realizados no local.
Com o avanço da vacinação, o público está voltando, mas, para Gabriela, ainda é arriscado repassar todos os custos para as clientes.
“As pessoas estão mais seguras e voltando à vida social, mas ainda tem muita gente com problemas financeiros. Nosso foco é oferecer novos serviços e atrair esses clientes. Fizemos um reajuste pequeno no preço", conta Gabriela.
Gabriela foca em serviços mais baratos e marketing pra driblar crise econômica — Foto: Arquivo pessoal
Soluções adotas:
- Novos serviços: a empresária criou um novo serviço, o cílios express, técnica onde não se preenche 100% dos fios e, por isso, custa mais barato. Ela também convidou uma fisioterapeuta para atender no local, que aplica reiki e massagens, focando em uma necessidade que percebeu em suas clientes durante a pandemia: a busca por serviços de bem-estar.
- Passou a dar mais cursos: Gabriela já ministrava o curso de formação de lash designer antes da pandemia, mas não era seu foco. Em 2020, passou a divulgar mais e isso ajudou no faturamento. Como muitas pessoas perderam emprego nesse período e precisavam de renda, a procura pelo curso aumentou bastante.
- Busca por melhores preços: como a maior compra de matéria-prima vem da China e a empresária não consegue investir na compra em grande quantidade, não conseguiu negociar valores. A solução foi intensificar a pesquisa para encontrar os melhores preços e aproveitar as promoções.
- Investimento pesado em marketing digital: Gabriela personalizou o contato pelo WhatsApp, contratou uma assessoria de marketing e focou no Instagram, que hoje tem mais de 16 mil seguidores.
"Matemática que não zera"
A pandemia foi avassaladora para Patricia Chaves Gentil e suas irmãs e sócias, Michelle e Cristine. Quando tudo fechou, elas tinham menos de 1 ano de operação do Gentil Café, uma cafeteria em Brasília que também oferece pratos para almoço e jantar.
Elas ainda têm custos altos de empréstimo, usados para a implementação do negócio, e não têm reserva de caixa. O faturamento ainda está em 60% de antes da crise.
“Água, luz e alimentos aumentaram absurdamente. Tem fornecedor que aumentou entre 50% a 80% o preço”, diz Patricia.
A empresária conta que alguns alimentos usados nos pratos do cardápio aumentaram 100%. Itens básicos, como óleo e arroz, também pesam.
“Nosso custo está muito mais alto e sem a quantidade de clientes necessária para dar conta da operação. É uma matemática que não zera, mas não temos a opção de fechar, só de sobreviver” afirma Patricia.
Sócias do Gentil Café reduziram horário de funcionamento e tiraram itens mais caros do cardápio — Foto: Arquivo pessoal
Soluções adotadas:
- Negociação: o café conseguiu o refinanciamento do empréstimo no início da pandemia, o que ajudou a manter outras contas básicas. Também conseguiu desconto no valor do aluguel;
- Adaptação do cardápio: foi preciso cortar pratos do cardápio. Um exemplo são os preparos com presunto parma, que por estar muito caro não tinha saída com os clientes;
- Funcionamento reduzido: antes eram 12 horas diárias. Agora, o café não abre pela manhã, funciona por 9 horas e fecha aos domingos. Assim, é possível manter a equipe reduzida também e economizar na conta de energia.
- Não reajustou o preço para o cliente: as sócias têm medo que isso afaste ainda mais clientes, que também passam por dificuldades.
"Gasolina representa 40% do meu ganho"
Neide Nascimento é motorista de aplicativo há dois anos e meio — Foto: Patrícia Basilio, g1
A paulistana Neide Nascimento trabalha como motorista por aplicativo há dois anos e meio em São Paulo. Os altos e baixos sempre fizeram parte de seu trabalho, mas após o auge da pandemia que praticamente paralisou o trânsito das cidades, ela enfrenta agora um novo desafio: lucrar em meio ao alto preço do combustível. Segundo o IBGE, a gasolina acumula no ano uma alta de 31,09%.
"A gasolina representa 40% do meu ganho. E além dela, há o desgaste do carro como um todo, que deve ser considerado. Por isso, preferimos trabalhar quando a corrida é longa e dinâmica", explica Neide, que faz cerca de 20 corridas diárias.
Outro ponto que Neide coloca na ponta do lápis é o risco de roubo do carro e de seus equipamentos, como o celular. Por este motivo, ela trabalha durante o dia, das 5h30 às 17h.
"Se o dia render, consigo parar às 14h30. É um dia pelo outro. Se a segunda for boa, a terça não vai ser. Mas como o nosso ganho é diário, dá para a gente se organizar para manter uma meta semanal", diz.
Apesar dos percalços, Neide afirma não ter deixado a profissão — como muitos colegas fizeram — porque o carro é próprio e garante lucro suficiente para pagar as contas no final do mês. Com o dinheiro das corridas, ela também está fazendo um curso profissionalizante de segurança armada. O plano da motorista é abandonar os aplicativos de transporte para trabalhar na guarda de espaços públicos e privados.
"Nós somos responsáveis pelo nosso futuro. Não vejo perspectivas de melhora nos aplicativos porque os gastos são cada vez maiores e os ganhos, menores", analisa.
Soluções adotadas:
- Organização: Coloca no papel os gastos e os rendimentos do trabalho diariamente. No final da semana, calcula lucro/prejuízo e pensar em ações para os próximos sete dias.
- Objetivos: Cria metas financeiras semanais. Assim, quando acaba de trabalhar, sabe se precisa se esforçar mais ou menos no próximo dia.
- Qualificação: Reserva parte do dinheiro para se qualificar e buscar uma alternativa de trabalho.
Fim do estoque e corte na margem de lucro
A confeiteira Nara Mendes Santana absorveu parte do aumento de preços dos produtos para produção de bolos — Foto: Fotos de Arquivo Pessoal
A confeiteira Nara Mendes Santana sente no bolso os efeitos da inflação. Quase todos os produtos que usa para produzir seus bolos e doces sofreram aumento de preço nos últimos meses, principalmente o leite condensado, o leite em pó e o gás de cozinha — atual vilão dos lares brasileiros.
Desde o início do ano, o preço médio do botijão de gás aos consumidores subiu quase 30%, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP), passando de R$ 75,29 no final de 2020 a R$ 96,89 na segunda semana do mês. A alta é mais de cinco vezes a inflação acumulada no período, de 5,67%.
Com os custos 50% mais altos, Nara teve de repassar 20% do aumento aos clientes. O resto, absorveu em sua margem de lucro. "É uma dificuldade muito grande [aumentar o preço dos produtos] porque os clientes não entendem e querem desconto. Perco encomendas", diz a confeiteira.
Para manter a qualidade dos doces e, ao mesmo tempo, mitigar o impacto nos rendimentos, Nara afirma ter deixado de fazer estoque de produtos. Ou seja, desde o início do ano, só compra os insumos para produção de bolos quando, de fato, recebe as encomendas. Também tenta sempre utilizar o forno para assar mais de um bolo.
"Não compensa mais guardar produtos, tampouco ter bolos prontos para venda. A concorrência do setor aumentou por conta da crise, fazendo com que muitos profissionais vendessem doces por valores mais baixos", afirma.
Soluções adotadas:
- Reajuste: Repassou 20% do aumento aos clientes e aborveu o resto em sua margem de lucro.
- Insumos: Compra produtos apenas quando há encomendas feitas. Assim, corre menos risco de pagar um preço alto por eles à toa e que eles entrem no prazo de validade.
- Gás: Utiliza o forno para assar mais de um bolo de uma vez só. Assim, faz o custo do gás compensar.
- Identidade: Aposta no recheio e na cobertura como diferenciais de sua confeitaria, mesmo com a inflação em alta.
Inflação em disparada: empresárias e autônomas contam suas estratégias para driblar perdas; veja dicas - G1
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